Publicado em: 04/11/2022

Tão sinuosa quanto o caminho político que levaria o Brasil à independência de Portugal, há exatos 200 anos, a viagem de Dom Pedro 1º do Rio de Janeiro a São Paulo também teve perrengues.

Estradas precárias que rasgavam a Serra do Mar, travessias de rio a nado e até uma disenteria do príncipe regente marcaram a travessia até o famoso grito às margens do Ipiranga.

Após transferir o poder para sua “muito amada e prezada esposa” Dona Leopoldina, Dom Pedro 1º levaria 12 dias até São Paulo, província que naquele momento se agitava com a elite que recusava cumprir ordens da então capital do Brasil, ameaçando a unidade nacional. A pequena comitiva de sete homens que fariam a viagem era formada, entre outros, pelo amigo de farras do jovem Pedro, o Chalaça (“espirituoso” ou “zombeteiro”, segundo dicionários); Luís Saldanha da Gama, futuro visconde de Taubaté; e o major Francisco de Castro Canto e Melo, irmão da Marquesa de Santos.

A viagem de 634 quilômetros até São Paulo começou na manhã do dia 14 de agosto de 1822, onde hoje fica a Quinta da Boa Vista (RJ), e passou por localidades do interior paulista, como Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté e Jacareí. O itinerário passaria também por lugares bem conhecidos dos paulistanos, como o bairro da Penha, na Zona Leste.

Naquela época, São Paulo era uma pequena vila com casas de pau a pique ou taipa de pilão, onde moravam cerca de 10 mil pessoas, incluindo as da área rural. “Apesar de ser pequena, era estrategicamente importante por causa do regime fluvial que corre para dentro do Brasil”, conta para Nossa o arquiteto e urbanista Paulo Rezzutti, autor do livro “Independência, a História Não Contada” (ed. LeYa).

Estrada de lama – Rota de pedras preciosas que seguiam para Portugal, uma das “estradas” por onde Dom Pedro 1º passou com sua comitiva era conhecida como “Caminho Geral do Rio a São Paulo”, atual Via Dutra. De acordo com o jornalista Eduardo Bueno, autor do livro ilustrado “Dicionário da Independência” (ed. Piu), aquela via sinuosa “era cheia de lamaçais, trechos íngremes, mata cerrada e rios que precisavam ser cruzados sem o auxílio de pontes”.

Atlântida brasileira – No segundo pernoite da viagem, a comitiva se hospedou na Fazenda Olaria, em São João Marcos do Príncipe, no Rio de Janeiro. Porém, essa antiga vila na Serra das Araras, o “primeiro degrau na escalada para o planalto paulista”, foi alagada no início do século passado para dar lugar à represa da Light, de acordo com descrição do historiador e cartógrafo Eduardo Canabrava Barreiros, autor do livro “Itinerário da Independência” (ed. José Olympio). A inundação da vila, que hoje “dorme, qual nova Atlântida”, levou para debaixo d’água uma estrutura urbana com casas neoclássicas, escolas, hospital e igrejas.

Príncipe à paisana – Como conta Rezzutti, que é também membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, diz a lenda que ao se hospedar na Fazenda Pau d’Alho, na Serra da Bocaina, Dom Pedro 1º não se identificou como príncipe ao solicitar comida. Por isso, a proprietária d. Maria Rosa de Jesus pediu então que o forasteiro “se servisse na cozinha, e não na sala, que estava sendo preparada para receber o príncipe”.

Devoto de Aparecida – Entre Guaratinguetá e Pindamonhangaba, Dom Pedro 1º esteve onde hoje fica o Santuário de Aparecida, no interior paulista. Foi ali, dias antes de proclamar a independência, que ele rezou diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida, “implorando intercessão à Virgem para a sua jornada”. Tombada há 40 anos pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico), a primeira basílica do Brasil, conhecida também como Basílica Velha, ainda tem a placa indicando sua passagem pelo local.

Figueira das Taipas O município paulista de Pindamonhangaba abriga até hoje a figueira onde Dom Pedro 1º teria descansado nessa mesma viagem. A ‘Figueira do Imperador’, no bairro das Taipas, no distrito Moreira César, tem 18 metros de altura e, atualmente, está em processo de tombamento pelo Conselho Municipal do Patrimônio. Essa cidade a 150 km da capital tem também o Chafariz do Cônego Tobias, onde a tropa teria parado para que os animais bebessem água, e o panteão com os restos mortais de pindamonhangabenses da Guarda de Honra de Dom Pedro 1º, na Igreja de São José da Vila Real de Pindamonhangaba. Aliás, os restos mortais do imperador chegaram a pernoitar na cidade, durante seu traslado de Portugal para São Paulo, em 1972.

‘Só mulher feia’ – Em Taubaté, o príncipe não só foi recebido por um grande números de cavaleiros, mas também por senhoras casadas e consideradas por eles como “feias”. Como conta Paulo Rezzutti, de acordo com outra lenda da viagem, o vigário local teria pedido que todas as moças bonitas deixassem a então vila paulista por conta do “fraco do príncipe por jovens formosas”.

Troca de calças – Em um dado momento da travessia, em Jacareí, o jovem Pedro teria preferido cruzar o rio Paraíba a nado. Com as calças completamente molhadas, o príncipe procurou na Guarda alguém que tivesse medidas parecidas às suas, trocando sua roupa encharcada com a do guarda Adriano Gomes Vieira de Almeida, que tinha cruzado o Paraíba de balsa.

Estrada da Independência – Construído em 1792 como o primeiro caminho pavimentado entre o litoral paulista e o Planalto, esse traçado em ziguezague e pavimentação de pedra viu Dom Pedro 1º nessa mesma viagem. “Era a melhor estrada do Brasil àquela época e como ela poucas eram vistas na Europa”, conta para a reportagem Benedito Lima de Toledo, arquiteto e pós doutor na Calçada do Lorena. Localizado no parque Caminhos do Mar, no ABC paulista, o atrativo é conhecido como Calçada do Lorena e hoje pode ser percorrido em uma trilha de 7 km (ida e volta) que corta a Estrada Velha de Santos em três trechos…

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